Na Mesa: Tropa de Elite

Arquivado sob (Na Mesa) por David em 29-09-2008

Esta resenha pode até vir um pouco tarde, já que o filme Tropa de Elite saiu nos cinemas em Outubro de 2007. Não tive oportunidade de ver o filme durante a estréia, já que estava fora do Brasil, mas encontrei o DVD do filme nesta semana e fiquei interessado em assistir a uma história contada sob o ponto de vista policial. O Brasil está ficando cada vez mais famoso por filmes como Cidade de Deus e Cidade dos Homens, que contam a história das favelas fluminenses pela perspectiva dos traficantes. Antigamente, quando alguém descobria que eu sou Brasileiro, a reação era: “Ah, Brazilfootball, Ronaldo!” Em outras raras vezes, mencionavam o Cristo Redentor, o rio Amazonas, as cataratas do Iguaçu. Bons tempos aqueles. Hoje em dia, quando revelo minhas ilustres origens (e as considero ilustres sim, sem ironia–amo o meu Brasil), a única pergunta que fazem é: “Como é que vocês conseguem viver com toda aquela violência o tempo todo? Você mora numa favela? Perto de uma? Já levou tiro de policial? A polícia é toda corrupta mesmo?” Eu era feliz e não sabia. Prefiro mil vezes ter que responder que “Não, não conheço o Ronaldo pessoalmente” do que ter que dar uma lição de cívica pra gringos cujas percepções do mundo são formadas, em grande parte, pelos filmes que eles vêem sobre países que nunca visitaram. Nem pra fazer um Googlezinho ou uma Wikípédiazinha…é deprimente.

Não acho que Tropa de Elite vá desfazer muitas destas falsas impressões, mas não culpo o filme por isto. Afinal, o filme é sobre o trabalho do BOPE (Batalhão de Operacões Policiais Especiais) nas favelas do Rio, que outra vez servem de palco para um drama de crime, corrupção, ação, e coragem. Não dava pra não ser um hit. Mas faço um apelo aos meus compatriotas espalhados pelo mundo: quando alguém falar deste filme, ou dos outros acima mencionados, por favor deixe claro que o Brasil todo não é assim. São histórias importantes que precisam ser contadas, que trazem à tona debates que precisam ser travados e problemas que precisam ser confrontados. Mas são apenas parte de um país multifacetado que merece ser entendido em mais profundidade do que apenas por caricaturas de seus extremos, sejam criminosos ou policiais.

O filme abre com uma frase do psicólogo social americano Stanley Milgran:

A psicologia social deste século nos ensinou uma importante lição: usualmente não é o caráter de uma pessoa que determina como ela age, mas sim a situação na qual ela se encontra.

É sob essa ótica (situacionista) que a história de dois PMs, Neto e Matias, é contada, simultâneamente com a história do narrador, o Capitão Nascimento do BOPE (excelentemente interpretado por Wagner Moura, à direita). O filme trata da ascensão de Neto e Matias pelos escalões da PM, lutando para manterem-se honestos e incorruptos e para fazerem o melhor trabalho possível. O problema é que estes ideais vão de cara com um sistema corrupto e sem honra, que pune aqueles que tentam avançar a justiça, se tal justiça for contrária aos interesses (em grande parte monetários) daqueles que detém o poder. No decorrer da história somos testemunhas da bagunça que afeta a vida de policiais trabalhando sob um sistema corrupto: os personagens sofrem de tudo, desde serem extorquidos para poder usufruir dos seus direitos (exemplo: férias) até terem as suas vidas ameaçadas pelos seus colegas de trabalho. Vemos também como a sociedade facilmente aponta dedos contra os policiais sem entender a fundo os desafios que estes homens e mulheres enfrentam todos os dias.

Técnicamente, em termos de roteiro, direção, atuação, cinematografia, e efeitos, o filme é um dos melhores que já vi sair do Brasil. Isso é impressionante, já que gostei muito dos aspectos técnicos de filmes como Central do Brasil e até Cidade de Deus. Creio que nestes termos, o cinema brasileiro não perde nada para muitos filmes que vemos saindo de Hollywood e da Europa.

Mas o que nos interessa neste blog é a mensagem do filme, o conteúdo mastigável, e neste quesito Tropa de Elite não desaponta. Vejamos então alguns dos temas para discussão que surgem do filme.

Corrupção Policial

O público brasileiro tem conhecimento suficiente para rejeitar uma tentativa de pintar de branco a corrupção que permeia quase todos os níveis das nossas instituições de segurança, quer sejam militares ou civis. Tropa de Elite deixa o balde de tinta de lado, e mostra como a corrupção afeta desde coisas corriqueiras até questões de vida-ou-morte. Não vemos uma luta entre o bem e o mal, e sim um processo de sobrevivência entre dois sistemas (policiais e traficantes) que desenvolveram uma simbiose, alimentando-se mutuamente.

O filme apresenta o BOPE como uma tropa que abomina a corrupção e não a permite entre os seus integrantes. Não sei nada sobre o BOPE, portanto não sei como avaliar esta premissa. No entanto, na vida real sou amigo de vários policiais (incluindo integrantes de tropas de elite) que dão duro para se manterem honestos, e cujas histórias são parecidíssimas com aquelas contadas no filme. Até o comandante-geral da PM concorda, dizendo que a discussão que o filme faz sobre corrupção é adequada.

Infelizmente Tropa não oferece soluções quanto a este problema, a não ser juntar-se ao BOPE. Há um certo fatalismo quanto ao sistema que existe dentro da policia, sem esperança de que vá mudar e sem idéias para iniciar tal mudança. Entendo que esta atitude possa ser fruto de uma vida vivida dentro deste sistema, mas creio que a nossa sociedade precisa tratar deste problema seriamente, e o quanto mais cedo, melhor.

A Hipocrisia da Sociedade

Vemos com freqüência, nos jornais e na televisão, histórias sobre a brutalidade e corrupção policial (quando esta é pega em flagrante). Mas muitas vezes fechamos os olhos para a responsabilidade que a nossa sociedade tem quanto às causas desta corrupção e desta brutalidade. O filme claramente conecta o consumo de drogas pela classe média com a sobrevivência do tráfico de drogas. Afinal, se ninguém comprasse, os traficantes não teriam para quem vender. Na próxima vez que você estiver numa festa e alguém te oferecer um pouquinho de erva, pense nisto. Quem põe a vida em risco por que você quebra a lei? Os jovens e crianças que fazem parte do sistema de tráfico dos morros; os policiais que estão na frente da guerra contra as drogas, e que são jogados cara-a-cara com jovens e crianças armados até os dentes.

E a hipocrisia não para por aí. Quando alguém na policia é pego extorquindo alguém, ou roubando da própria polícia, os políticos do nosso país emergem dos esgotos morais onde vivem, atropelando uns aos outros para fazer pronunciamentos condenando a imoralidade dos policiais, que afinal são servidores públicos e não deveriam estar se envolvendo nestas coisas. Imagine isto!

E porque é que te hás-de preocupar com uma palha no olho do vizinho quando tens uma tábua no teu próprio olho? Liberta-te primeiro do que tens na vista e depois então poderás ver para ajudar o teu irmão. – Jesus (Mateus 7:3,5)

Não estou dizendo que não devemos cair em cima da corrupção policial. Mas acho uma hipocrisia enorme aqueles que reclamam de um sistema corrupto e insistem em votar em políticos que “roubam mas fazem”, ou que contribuem para a corrupção do sistema quando pagam o guardinha para fazer vista grossa no trânsito ou para qualquer outra ação ilegal.

Tortura

Me recordo vagamente de ter sido proibido de ver Rambo quando era criança. Agora que estou prestes a ser pai, começo a entender o zelo que meus pais tinham pela minha inocência. Os tempos eram outros, e filmes como Rambo esticavam os limites do que podia passar por “entretenimento” numa tela de cinema.

Bom, perto de Tropa de Elite, Rambo é uma bailarina de 5 anos, com vestidinho rosa e fitinha no cabelo. Não só pela violência forte, mas especialmente pelo uso corriqueiro de técnicas de tortura, como se estas fossem completamente normais e aceitáveis. Só ouvimos um membro do BOPE se pronunciar, fracamente, sobre o assunto. Ele é convidado a se retirar e os seus colegas continuam a trabalhar tranqüilamente.

Nos últimos 10 anos, presenciamos uma transição na forma em que tortura é apresentada no cinema e na televisão. Nos filmes e seriados de Hollywood a tortura tem se tornado apenas mais uma ferramenta a ser usada para prevenir crimes e ataques terroristas. Exemplos disso estão na sua locadora mais próxima, é só assistir Alias ou 24. Se existe algum conflito moral ou emocional, é facilmente resolvido durante o episódio, e dá-lhe tortura nos criminosos / terroristas / inocentes. Opa! Inocentes? É isso mesmo, vá assistir à quarta temporada de 24 para receber uma lição sobre como a tortura de inocentes pode ser justificada, já que a própria tortura acaba provando a sua inocência. É mole?

Mas voltando à presença de tortura em Tropa, acho que o ponto de vista tupiniquim quanto à tortura nunca foi o mesmo do idealismo americano que é emanado pelos seus filmes antigos. Pelo que posso ver, tratamos tortura da mesma forma que tratamos corrupção: com fatalismo. “Sempre foi assim, sempre vai ser assim. Não adianta fazer nada, isso é uma parte normal do trabalho dos serviços de segurança pública do Brasil.” Ok, tudo bem. Pode até ser uma “parte normal” do trabalho deles. Mas por que consideramos isto normal? Deveria ser normal? Quando foi que perdemos o ideal de justiça: que um réu é inocente até que seja provado o contrário?

O problema não é só a perda do ideal, mas a transformação do agente de polícia de defensor público para defensor, juiz, e executor de sua própria justiça (e não da lei). O filme não trata explícitamente sobre questões de pena de morte, mas no fim é isso mesmo o que acontece quando este tipo de poder reside nas mãos de policiais que estão sob tremenda pressão. Existem razões que tentam justificar este tipo de ação pelos policiais

  1. a lei é demasiadamente complicada e quase impossível de se aplicar diante das situações vividas todos os dias pelos policiais,
  2. mesmo quando a lei funciona e o criminoso acaba na cadeia, o sistema jurídico é corrupto e acaba soltando-o dentro de pouco tempo, ou, se não,
  3. o sistema de encarceragem é corrupto e permite que o criminoso continue as suas atividades dentro da própria cadeia.

Não tenho dúvidas de que todas estas coisas sejam verdadeiras. E com certeza, o fato de que estes sistemas estão todos quebrados não faz fácil a vida do policial. Mas a solução não pode ser a quebra de mais um dos sistemas da nossa sociedade, o da defesa pública. Tem sido assim desde que me dei por gente. Nas minhas visitas aos Estados Unidos, ficava pasmo a ver o respeito, honra, e apreço que os americanos “normais” tinham pelos seus policiais. Porque era assim? Porquê os cidadãos sabiam que os policiais estavam lá para manter a lei e a ordem, para servir o público, trilhando um caminho estritamente linhado pelas leis do país.

Contrasto isso com o que tenho visto da reação pública à polícia brasileira: medo, desrespeito, e desprezo. No Brasil, não sabemos o que vai acontecer quando o policial nos pára. Vai nos agredir? Vai inventar alguma razão para nos extorquir? O policial brasileiro é um fator desconhecido na fórmula da lei, justamente porque às vezes assume os papéis de juiz e executor. E o pior é que, a medida que vamos subindo a escala hierárquica, a coisa vai piorando, vamos encontrando pessoas cuja experiência de vida tem sido justamente uma mescla de todos estes papéis diferentes. Ao invés de serem defensores da lei, criaram e perpetuam um sistema onde a polícia é uma lei para si mesma, que se permite fazer o que ela, como instituição, achar necessário para promover a sua idéia de justiça (que é afetada pela corrupção em todos os níveis).

Nem todos os policiais são assim, é claro. Já disse que conheço vários policiais honestos, que tentam ir contra o sistema quebrado e corrompido pelos fatores discutidos acima. E antes que alguém me acuse de ter uma perspectiva distorcida dos serviços de segurança pública nos Estados Unidos, muita coisa mudou desde os dias em que observei aquelas reações respeitosas pelos cidadãos daquele país. Infelizmente o cidadão americano, hoje em dia, especialmente aquele que viaja bastante, tem muitas razões para temer aqueles que deveriam protegê-los. Tortura e corrupção do sistema afetam os americanos mais e mais a cada dia, especialmente à luz dos desenvolvimentos em sua política exterior e do seu tratamento de prisioneiros na “guerra ao terror”.

Mas isso não justifica os problemas nos nossos sistemas de lei, justiça, e defesa pública. São crises morais e legais que precisam ser discutidas, trabalhadas, e resolvidas. E o caminho para isto não se encontra no comodismo, e sim no desperto moral, espiritual, e intelectual da nossa própria sociedade, do cidadão que hoje é “só mais um” mas que amanhã poderá se tornar legislador, juiz, ou policial.

Vida de Policial

As pressões destes sistemas quebrados, da violência feita contra–-e pelos-–policiais, da tentativa de manter a honestidade num ambiente em que cada um está correndo atrás dos seus interesses, acabam afetando a vida familiar de todos aqueles envolvidos na história, sejam criminosos ou policiais. O filme não mede esforços para mostrar como tudo isso afeta as famílias: vemos uma mãe desconsolada pela morte do filho “fogueteiro” que foi usado pela polícia para descobrir um traficante; testemunhamos o desespero da esposa de um “dono de morro”, tendo que correr para salvar a si mesma e ao seu filhinho; acompanhamos as dificuldades de um dos policiais em servir no seu trabalho enquanto faz faculdade, incógnito–ouvindo lá poucas e boas sobre os defeitos da policia depois de observar seus amigos fumando um back; e nos entristecemos ao ver o que a pressão sobre o Capitão Nascimento faz com a sua família.

No fim das contas, ao debatermos os temas acima e ao sairmos à busca de soluções, precisamos lembrar de que por trás de qualquer organização, por mais corrupta que seja, existem vidas humanas e famílias que precisam de ajuda e amparo para resolverem os problemas criados por estas situações tão difíceis. Não podemos simplesmente considerar que a corrupção que vemos em certos segmentos destes sistemas seja culpa de todos os seus integrantes. Se desprezarmos aqueles que são responsáveis pela nossa proteção, sem oferecer amparo ou apoio, sem procurarmos conhecê-los como pessoas e não simplesmente como caricaturas da mídia e dos nossos medos (justificados ou não), perdemos a oportunidade de, como sociedade, melhorarmos as suas vidas, combatendo os fatores que muitas vezes levam à corrupção, à violência, e à destruição de famílias. Você conhece algum(a) policial? Já perguntou a ele se ele ou ela vai bem? Se precisa de alguém para conversar? Já convidou a sua família para jantar na sua casa? Ou será que virou a cara quando passaram os PMs na sua rua? Se você não é parte da solução…

Conclusão

Minha recomendação é que aqueles que tem estômago forte e interesse em saber mais sobre os desafios da polícia em geral, e mais especificamente de policiais de elite como os integrates do BOPE, ponham os filhos para dormir (há bastante violência e flashes de nudez, palavreado street, etc.) e assistam o filme junto com amigos que possam conversar sobre os temas mencionados acima. São debates relevantes aos nossos dias, que precisam ser tratados com seriedade. São problemas que devem fazer parte da nossa consciência social, e que gritam por soluções em todos os níveis da sociedade.


Filme: Tropa de Elite
Distribuição: DVD
Gêneros: Ação / Policial / Drama / Crime
Direção: José Padilha
Roteiro: Bráulio Mantovani, José Padilha, Rodrigo Pimentel. Baseado no livro Elite da Tropa (2006), escrito por André Batista, Rodrigo Pimentel e Luiz Eduardo Soares.
Fotografia: Lula Carvalho
Elenco: Wagner Moura, Caio Junqueira, André Ramiro, Milhem Cortaz, Luiz Gonzaga de Almeida, Bruno Delia
Duração: 115 minutos

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