Vavá

Arquivado sob (Mastigando) por David em 20-07-2010

(Re-publicando um texto meu de 26 de março de 2003, do meu primeiro blog. Um amigo meu me lembrou do texto–eu já havia esquecido–e me trouxe à mente algumas memórias boas.)

Estava lendo um e-mail da minha mãe, que no momento está em Recife ajudando os meus avós a se mudarem da casa onde cresci para um apartamento (que ainda vão escolher).

É claro que fico um pouco triste por causa da perda do patrimônio, da casa onde tive tantas experiências boas, onde aprendi a subir na jambeira e nas grades, onde joguei futebol, basquete, pingue-pongue, onde tantos Comandos em Ação lutaram bravamente nas batalhas travadas entre meus amigos e eu. Foi lá que aprendi a ler e escrever, antes de ir pra escola (minha mãe me ensinou). Foi lá que aprendi a orar, decorei versos da Bíblia, e pude desfrutar da presença santa de meus avós, que são acima de tudo excelentes exemplos do que é ser um servo de Deus. Também lá pude mexer no meu primeiro computador…primitivo, mas fascinante. Aprendi a tocar um pouco de piano. Escrevi meus trabalhos de escola, que pareciam tão difíceis (Montezuma e os Aztecas, Tenochtitlán e Hernando Cortez, lembra mãe?) mas que agora seriam feitos em alguns minutos. Fiz fortalezas impenetráveis com os móveis da sala, usando as almofadas como telhado e espiando os “inimigos” pelas frestas. Tomei choque na tomada (quando era bem pequeno mesmo), machuquei a mão no fogão, caí muitas vezes e raspei os joelhos, chorei pelas mais variadas e estranhas razões. Lá comi minha primeira tapioca, bolo de laranja, pudim de leite moça, inhame, bolo de rolo (rocambole para os ignorantes), pirulito zorro, chiclete azedinho- doce de morango, feijoada, café com leite, doce de banana, doce de ameixa (cristalizado hum…), bolacha cream cracker com manteiga…jambo, jaca, carambola, pitomba, jabuticaba, mamão, melão, laranja, tamarindo…nossa, é melhor parar porque essa lista não pára nunca.

Um dos meus maiores desejos é que eu possa um dia proporcionar um lugar assim, aconchegante, onde os meus filhos possam crescer e criar memórias felizes. Pai (ambos, o celestial e o terreno), se nunca te agradeci por isso, te agradeço agora.

Mas o que me chamou atenção na carta da minha mãe foi a referência que ela fez ao menino que trabalhava lá na nossa casa, quando eu era pequeno. O nome do rapaz era Vavá. Um pouco mais velho do que eu, ele devia ter uns 16 ou 17 anos quando nos mudamos de Recife para Manaus. Durante alguns anos ele teve que me aguentar: seguia o coitado enquanto ele fazia suas tarefas, enquanto limpava o quintal, enquanto comia, enfim, o tempo todo. Fazia perguntas sobre tudo, e o Vavá respondia com paciência. Quando matava uma cobra, me chamava pra ver. Quando tinha jambo na árvore, ele tirava pra mim (nessa época eu ainda era pequeno demais pra subir na jambeira). Mas durante este tempo sempre ficou claro que a nossa amizade não era normal, era uma amizade de filho de patrão e de empregado, como se a situação econômica das nossas respectivas famílias definisse uma linha que não podiamos cruzar como amigos. Nunca gostei dessa linha, sempre vi o Vavá como pessoa e não como empregado, como amigo e não como employee. Claro que ele provavelmente me via como um pirralho insolente que não o deixava em paz, mas nunca deixou isso transparecer, sempre foi muito legal comigo.

Hoje o meu amigo Vavá tem dois empregos: à noite ele trabalha como guarda, e de dia ele junta papel, plástico, vidro, metal, etc., pra vender. Não falo com ele há varios anos. Mas nessa semana ele está lá, ajudando minha mãe a limpar a casa, arrastando o lixo pra fora, se despedindo pela última vez daquela casa onde ele trabalhou durante alguns anos. A linha que nos separava na
minha infância ainda está lá, e eu percebi hoje ao ler o e-mail, pra minha infelicidade, que eu acabei me tornando como todo o resto do mundo, e aceitando aquela linha como se fosse normal, tratando as pessoas conforme minha sociedade diz que devo tratar, isto é, baseado naquilo que elas tem ou não tem. Isso me entristece bastante, pois aquele sentimento que tinha na minha infância já me avisava que isso é completamente errado.

O ser humano não tem o seu valor naquilo que os outros pensam (como escrevi ontem), e muito menos naquilo que ele tem ou não tem. O ser humano tem valor porque é criatura de Deus, feita à sua imagem. O ser humano tem valor porque Deus o criou para estar em relacionamento com Ele, um relacionamento de amor, obediência, carinho, adoração, e crescimento. Nenhuma outra criatura tem esse privilégio ao ponto que o homem tem: de ter a chance de ser resgatado de uma vida de perdição eterna para uma vida de alegria eterna, tudo por esse Deus que ama e que quer estar em relacionamento com o seu povo.

Isso tudo é muito lindo, mas se colocássemos mesmo na prática creio que teriamos que mudar bastante a nossa maneira de tratar as pessoas. Oro pra que isso seja realidade na minha vida, estou cansado de viver dentro dos parâmetros que o mundo colocou ao meu redor, como obstáculos intransponíveis. Vou “tirar o meu dedo do dique” e ver o que acontece…

Mordidas:

(2) Mordidas para o primeiro post!

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